terça-feira, 12 de outubro de 2010

CHINESICES




Este ano a Academia Sueca decidiu atribuir o Nobel da Paz ao cidadão chinês Liu Xiaobo. Confesso desde já que foi a primeira vez que ouvi falar no homem, crendo mesmo que se já tivesse ouvido o nome não o teria fixado, porque com nomes sou do diabo.

Liu Xiaobo está preso na China, acusado de “tentativa de subversão contra o poder do estado”, um crime vago, logo arbitrário pela sua vacuidade. Pelos vistos este crime, no caso de Liu Xiaobo, resulta da assinatura de um texto manifesto a “Carta 08”, que li e assinaria sem reservas.

Aliás, em Portugal, a decisão de prender alguém por estas razões violaria vários preceitos constitucionais, desde logo o Artigo 21º ( direito de resistência); “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” Liu Xiaobo não foi tão longe, associou-se a outros cidadãos chineses que tornaram públicas as suas opiniões sobre a situação política interna na china. Até agora, o Governo chinês, que seja do meu conhecimento, não acrescentou outras acusações a este cidadão, além deste delito de opinião.

Nas reacções à atribuição desta distinção o Governo Chinês acentuou as ameaças de represálias diplomáticas e económicas sobre a Suécia, país onde está sediada a Academia Nobel, ignorando que num estado não totalitário, como é a China, o poder dos Governos tem limitações e que talvez uma das limitações do Governo Sueco será a impossibilidade de determinar as posições da Academia que atribui os Prémios Nobel.

A China é um Regime Político Totalitário que nega aos seus cidadãos direitos, liberdades e garantias que no nosso património cultural e civilizacional foram ganhos e instituídos mediante o auto-sacrifício de muitos Liu Xiaobo. Na sua inserção internacional o Estado Chinês tem uma postura pouco diferente de qualquer outro imperialismo histórico, determinando as suas acções politicas e económicas pelos objectivos da influência e do controlo.
Para quem, como eu, procura fazer uma crítica de superação da globalização capitalista, encaro ainda o actual papel da china nesse campo como profundamente negativo. A integração da China no sistema de comércio mundial, a partir da década de 70 do século passado, constituiu um novo fôlego para o sistema capitalista mundial. Nunca a expressão “negócio da China” teve tanto conteúdo como hoje. A disponibilização no mercado internaciacional de uma reserva de mão-de-obra vastíssima, enquadrada por padrões sociais e económicos próprios da velha revolução industrial, a falta de observância de exigências ambientais e o espartilho de um sistema político centralizado e opressor, resultaram numa pressão sem precedentes sobre os níveis de desenvolvimento integral já alcançados por muitas sociedades durante mais de 150 anos.

O capitalismo encontrou na China e no argumento chinês um terreno fértil ao seu desenvolvimento, por um lado aproveitando as condições únicas de exploração que um regime capitalista totalitário pode oferecer, e historicamente sabemos bem como o capitalismo se dá bem com o totalitarismo, por outro utilizando argumentos objectivos para a redução dos padrões económicos e sociais nas sociedades mais desenvolvidas.

Liu Xiaobo talvez esteja preso um pouco por todos nós.

9 comentários:

  1. É no que dá ter um país com dois sistemas, embora a expressão seja demasiadamente simplificadora. No entanto, subscrevo o post sem reservas.

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  2. A experiência chinesa merece uma análise muito mais profunda, para lá dos lugares comuns habituais.
    É sem dúvida a mais original, surpreendente e relevante das transformações das últimas décadas.

    Não é com duas cantigas que se percebe a coragem do PC Chinês, o mais omnipotente e aquele que disfrutava das condições mais propícias, de reconhecer a sua incapacidade para resolver os problemas do seu povo pelo recurso à retórica convencional.

    Por isso hoje, o PC Chinês, está onde está e o PC da URSS deixou de ter qualquer influência.
    Será isso que não lhe perdoam?

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  3. Só publicar os comentários "após aprovação" não está muito de acordo com o texto deste post.

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  4. A moderação de comentários foi um ponto que não reuniu consenso entre estes escribas. Acabou por ficar pelas razões indicadas na Apresentação do blog.

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  5. Debater a China, o PC Chinês e tudo o que mais se entenda é algo para o qual estou sempre disponível, mas desde já me parece que o argumento da “fortaleza”, como algo benéfico, não se possa colocar logo no início do debate como prelúdio a uma conclusão. Conclua-se que é bom e congratulemo-nos depois com a “fortaleza”, conclua-se que é mau e lamentemo-la.
    Apesar do debate e dos esclarecimentos todos, desde já digo que mesmo participando nele, farei por sair como nele entrar, a entender que nenhum modelo alternativo se pode construir passando pela supressão das liberdades individuais, pelo desrespeito de valores fundamentais de valorização ser-humano na sua integralidade, que nada de bom se edifica (a sua referência à URSS é pertinente) criando tantas e justificadas excepções à matriz libertária do comunismo até ao ponto que dele reste apenas uma sigla.
    O partido que governa a China chama-se Partido Comunista, não o avalie pelo nome, não entenda que esse título o torna imune a caminhos contraproducentes, tente abstrair-se da designação e faça um exercício de análise onde valorize a acção concreta.
    A mim, em nome de nada, me verá justificar a pena de morte, em nome de nada me verá justificar a prisão por delito de opinião, em nome de nada me conseguirá convencer que estancar administrativamente a contradição social e as suas manifestações, quando elas são orgânicas nas sociedades humanas e veículo permanente de criatividade e progresso social, é um caminho para qualquer lado que não seja para o desastre.
    A minha preocupação com a China não resulta duma crítica à possibilidade nem à necessidade de um modelo de organização social e económica diferente, mas sim à viabilidade de o construir com aquelas práticas. De resto não serão as nossas opiniões a determiná-lo, nem a minha nem a sua, mas sim o normal fluir da história.

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  6. Caro Penim

    Esqueci-me de acrescentar uma coisa. O PCP não é a Secção Portuguesa do PC Chinês (como muito bem me recordou um amigo). Sem nunca o ter referido no texto, é claro que ele tem como horizonte e mote a nota do PCP sobre o Nobel, aqui não há gato escondido com rabo de fora!
    Não consigo é encontrar na história do PCP, na sua prática, nem em nenhum dos seus escritos, nada, mas absolutamente nada, que possa dar substrato teórico ou prático àquela tomada de posição.

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  7. Caro Bruno,

    uma coisa são os princípios em que ambos estamos de acordo.
    Outra coisa são as situações históricas em que os princípios nascem, envelhecem e morrem. As condições concretas em que se tenta dar corpo aos princípios.

    A China vem de milhares de anos de poder absoluto, dos imperadores e de Mao Tse Tong. Tem bases culturais antiquíssimas, como o Confucionismo, em que a obediência aos superiores é considerada um bem.
    O povo chinês sofreu as maiores violências que se pode imaginar ao longo da sua história (até há bem pouco tempo com a "Revolução Cultural"), passou fome como poucos, foi colonizado por ingleses e franceses e viu o seu país saqueado, sofreu chacinas da parte do Japão e está sujeito a uma massificação inevitável quando se cohabita com mais 1.300 milhões de pessoas.

    Querer que um partido, que tem tirado da miséria dezenas de milhões de habitantes todos os anos, que procura salvaguardar o seu país do desmembramento e do caos, consiga em tão curto prazo fazer tudo isso e, ao mesmo tempo, implantar uma "democracia perfeita" como a nossa, parece-me um bocadinho exagerado.

    Quando vou à China, perante a dimensão dos desafios, eu agradeço aos céus a existência de um partido que assegura a ordem e o civismo.
    Ninguém consegue imaginar o catástrofe que seria a instalação do caos numa sociedade como a chinesa. O caso da Tailândia é uma miniatura do que poderia acontecer.

    A evolução democrática da China tem sido positiva e penso que se deve dar tempo ao tempo.

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  8. Penim

    Não ponho em causa a influência da herança cultural e do contexto histórico no actual estádio de desenvolvimento da China, mas cuidado que o relativismo cultural não pode ser justificativo para tudo e mais um par de botas.
    No campo dos direitos humanos não há relativismo cultural que safe a china ou a coreia do norte.
    Não pode o relativismo cultural justificar a pena de morte, a lapidação de mulheres, a censura, a prisão arbitrária, etc... que se verificam um pouco por todo o mundo. As sociedades não são monólitos, existem sectores sociais que pelos vistos rompem com os patrimónios culturais e históricos mais obscuros, já lhes chamámos vanguardas. Contudo parece que teimamos em glorificá-las apenas em alguns contextos.
    Pelos vistos, se na China a obediência cega ao chefe é cultural, o PC Chinês cultiva esse ónus cultural em seu favor, tratando-se como se vê quem dele se libertou.
    Faço-lhe uma precisão marxista, quem liberta os povos da fome é o seu próprio trabalho, não se deve endeusar o partido. E no caso da china, ao contrário de cuba, a economia de escala de uma população imensa, de um território rico e vasto são uma vantagem e não o problema.
    Registei que sobre o papel da China no desenvolvimento do capitalismo internacional, nem uma palavra. Já agora, não se esqueça que se o socialismo é uma criação cultural e histórica do ocidente, também o capitalismo o é, mas aí as barreiras para penetrar na china são mais brandas!

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  9. Bruno,

    creio que no campo dos príncipios estamos de acordo, como já disse. Mas os princípios são uma coisa fácil, podemos tê-los de qualquer cor, à mesa do café.

    Outra coisa bem distinta é ter a responsabilidade de governar um país de 1.300 milhões de pessoas. Especialmente quando essas pessoas viviam quase todas na pobreza extrema.

    Nessas circunstâncias temos que pensar em que medida os nossos princípios estão a contribuir para a sua felicidade ou desespero.
    Não sei se o Bruno tem alguma solução melhor do que a adoptada pelo PC Chinês, e a que chama capitalismo, para gerar um desenvolvimento acelerado da economia. Eu, confesso humildemente, não tenho.

    Seja como for, na China ainda é o PC que decide quem faz negócios e quem não faz, de que maneira os faz e até quando os faz.
    Com esse método o Estado Chinês tornou-se uma potência económica incontornável de que os principais países capitalistas dependem.

    O futuro dirá em que medida esse enorme poder foi posto ao serviço de todo o povo.

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