Recebi no facebook um convite para boicotar o semanário Sol devido a este texto de José António Saraiva.
Não o vou fazer, por duas razões:
- nunca comprei o semanário Sol, pelo que dizer agora que o vou boicotar era uma grande piada para a insider que há em mim;
- a liberdade de expressão existe para promover o debate de ideias - e é o debate que nos faz avançar.
Ora então, por partes:
1. À data em que este artigo de opinião foi escrito, o casamento de pessoas do mesmo sexo já era permitido na Holanda há dez anos, na Bélgica há oito, em Massachusetts (EUA) há sete, na Espanha e no Canadá há seis. Nos últimos cinco anos, muitos outros estados se juntaram a essa lista. Em Portugal, a respectiva lei foi aprovada há mais de um ano - e após um intenso debate.
Ou seja: hoje em dia, qualquer pessoa minimamente informada que leia sobre um casal em que ambos os cônjuges têm nomes masculinos, não precisa de ler segunda vez para verificar se leu bem. Pode concluir logo à primeira leitura que se trata de um casal de pessoas do mesmo sexo.
2. "Separado? Mas os gays, que travaram uma luta tão grande, tão longa e tão dura para poderem casar-se, separam-se afinal com a mesma facilidade dos outros casais? Não seria normal que, pelo menos nos primeiros tempos de vigência da nova lei, procurassem ser exemplares, até para provarem aos opositores que as suas convicções eram fortes e sua luta era justa?"
Sim, os gays separam-se afinal com a mesma facilidade dos outros casais. O que está em causa é a igualdade: o direito de casar, e o direito de se separar com a mesma facilidade dos outros casais.
(nesta frase, gosto especialmente da palavra "facilidade" - não fazia ideia que os casais heterossexuais se separavam com facilidade, o que pressupõe uma certa leviandade na decisão de casar - e eu a pensar que os heterossexuais levavam essa instituição muito a sério!)
E não, não seria normal que, pelo menos nos primeiros tempos de vigência da nova lei, procurassem ser exemplares. Um casamento não é uma bandeira, é um acto fundado no amor. Se a relação não funciona e não se lhe vê futuro, o mais normal é que se desfaça o casamento: por respeito a si próprio, ao outro membro do casal e até à própria instituição.
Surpreende-me que alguém sequer imagine que se possa prolongar o vínculo do casamento por motivos exteriores à relação, mascarando e pervertendo a sua verdade.
3. "Acresce que um dos membros do ‘casal’, Jorge Nuno de Sá, na altura deputado, pessoa com alguma notoriedade social, ao assumir o risco de tornar pública a sua homossexualidade e o seu amor por um homem, parecia querer dizer a todos que a decisão de se casar fora devidamente amadurecida. Ora, depois disso, qual o sentido de se separar ao fim de meia dúzia de meses?"
Acontece nas melhores famílias. Alguém precisa de exemplos?
4. "Mas a leitura de mais pormenores sobre o ‘casal’ ajuda a lançar alguma luz sobre a história. O ainda marido (ou mulher?) de Nuno de Sá é um massagista de nacionalidade venezuelana, de nome Carlos Eduardo Yanez Marcano (e não Maceno como dizia o DN), com menos 10 anos do que ele. Perante este bilhete de identidade, compreendem-se melhor as zangas, as agressões – e finalmente a lavagem de roupa suja na praça pública."
Depois do conselho às raparigas portuguesas para pensarem duas vezes antes de casar com muçulmanos, vem o conselho aos rapazes portugueses para que pensem duas vezes antes de casar com estrangeiros 10 anos mais novos e com profissões mal remuneradas. Atentem no aviso que vos é feito: podem meter-se num monte de sarilhos!
Caramba, está cada vez mais difícil escolher a pessoa certa e infalível para casar.
Agora, a sério: não caia na tentação de generalizar, José António Saraiva. Não venha com insinuações sobre os sul-americanos de baixos rendimentos que são mais novos que o parceiro. Olhe que o Ben Kingsley pode não achar muita graça.
5. Que nome dar a um dos elementos de um casal de homens: marido ou mulher? É uma questão complicada, reconheço, porque nos habituámos a dizer casamento-marido-mulher, e agora é preciso construir novos troços nas auto-estradas dos neurónios. Boas notícias para todos: consta que essas obras nas auto-estradas cerebrais são um óptimo exercício para prevenir o Alzheimer.
Quanto ao mais, esclareça-se que um marido é um cônjuge do sexo masculino. Não há que hesitar.
Porquê chamar-lhe mulher? Um homem não é uma mulher (sim, eu sei: foi a lapalissade do dia). Pese embora a polissemia do termo "mulher", parece-me que dizer que um homem é a mulher de outro comporta o seu quê de chacota e humilhação premeditadas, atitudes que convinha evitar nos discursos que se pretendem construtivos, respeitadores e pacíficos.
Porque (cá vamos nós fazer uma pequena revisão da matéria dada) a Democracia defende a liberdade de expressão não para que cada um diga tudo o que lhe apetece, mas para que as suas ideias possam enriquecer o debate público e alargar os horizontes da sociedade. Esse direito pressupõe a aceitação dos princípios básicos da mesma Democracia, nomeadamente o respeito pela dignidade do ser humano.
6. "As palavras que usamos têm um significado que o tempo e o uso foram consolidando – e ‘casamento’ na nossa civilização quer dizer a união entre um homem e uma mulher, ou seja, o acto fundador de uma família. Querer que a palavra tenha outros significados é uma aberração que põe em causa as próprias referências do meio em que vivemos."
O significado das palavras não é imutável. O tempo e o uso tanto consolidam como transformam. Na nossa civilização (atenção: já vamos na segunda década do séc.XXI) o casamento está cada vez mais assente no aspecto afectivo.
Olhemos para a História, observemos como foi evoluindo o modo como a sociedade entende esta instituição. Porquê parar algures em meados do século passado, porquê recusar à sociedade o direito de se continuar a transformar? Concretamente: se nos nossos dias o elemento fundador do casamento é o amor, porquê recusá-lo aos casais do mesmo sexo?
Olhemos também para as contradições do nosso presente: o casamento (heterossexual) é muitas vezes usado para fins diferentes daqueles que se diz serem a sua essência, o que põe em causa as referências do meio em que vivemos. Pensemos no casamento tipo golpe do baú, no casamento entre o estudante de vinte anos e a velhota que lhe subaluga o quarto, no casamento para sair finalmente da casa dos pais, ...
7. "(...) não é necessário pôr em causa as nossas referências nem baralhar os nossos pobres espíritos. Nem – já agora – complicar a vida aos pobres jornalistas, pondo-os a pensar se estará certo dizer ‘o ex-marido de Jorge Nuno de Sá’."
"baralhar os nossos pobres espíritos" e "complicar a vida aos pobres jornalistas, pondo-os a pensar"
Homem, porque não avisou logo no princípio? Poupava-me o trabalho de o levar a sério!
Helena Araújo no blog "2 Dedos de Conversa"
Não posso concordar mais.
ResponderEliminarContudo, a democracia e liberdade não fizeram com que este senhor se abstivesse de escrever tão ridiculo artigo. sinceramente!
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