sábado, 18 de janeiro de 2014
FAZES-NOS UMA FALTA DO CARAÇAS, ARY DOS SANTOS
Vi-te declamar pela primeira vez, há mais de quarenta anos, num convívio de operários da cintura industrial de Lisboa, no Centro Social e Paroquial de Moscavide. Para quem lá esteve e se recorda de te ouvir a dizer A SIGLA (SARL), sabe que os poucos registos que nos ficaram do imenso declamador não te fazem justiça.
Eras um gajo grande, exuberante, mas em frente duma audiência crescias ainda mais dois palmos. A voz ganhava força, o punho direito martelava as palavras, poeta e poema fundiam-se numa mensagem de denuncia, protesto, revolta e esperança. Foste um poeta de tempos difíceis, que neste tempo desgraçado nos volta a fazer uma falta do caraças.
SIGLA
S.A.R.L. S.A.R.L S.A.R.L.
a pança do patrão não lhe cabe na pele
a mulher do gerente não lhe cabe na cama.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o cabedal estoira
e o capital derrama
O salário é sagrado
o direito é divino
mais o caso arrumado do poder que é bovino.
O papel é ao quilo
o cadáver ao metro
mais o isto e aquilo
com que se mata o preto.
O retrato é chapado
a moldura é antiga
para um homem armado
a catana é cantiga.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o respeito algemado
o sorriso fiel
do senhor cão pastor que tem coleira aos bicos
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
só salvamos a pele se formos cães de ricos:
A palhota de mágoa
a casota de medo
mais o pão e a água
que nos dão em segredo.
A gaveta arrumada
a miséria contida
mais a fome enfeitada
que há num dia de vida.
O cachorro quieto
o prazer solitário
do filho predilecto
do doutor numerário.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a folha de serviços a folha de papel
o fabrico o penico o sono estuporado.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o silêncio por escrito o silêncio ladrado:
A mensagem urgente
o envelope fechado
mais o rabo pendente
do animal escorraçado.
O contínuo presente
o contínuo passado
mais a fala deferente
do contínuo coitado:
Permite-me permite
Vossa Celebridade
o limite o limite
o limite de idade?
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
Ai o sal deste mar ai o mel deste fel
o azeite o bagaço
o cagaço o aceite
deste lagar Tarzan traumatizado.
Ai a fase do leite
ai a crise do gado
neste curral sinónimo do homem
ANÓNIMO
RESPONSÁVEL
LIMITADO.
(Ary dos Santos, INSOFRIMENTO IN SOFRIMENTO, 1969)
FB 18/1
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